Toxicologia forense: coleta de amostras para exames toxicológicos
Toxicologia é o estudo dos efeitos adversos que substâncias químicas e físicas podem causar em organismos vivos, atuando na prevenção, diagnóstico e tratamento de envenenamentos. A toxicologia forense, por sua vez, é uma disciplina multidisciplinar com um foco jurídico. Sua principal função é fornecer evidências científicas para suportar investigações criminais, utilizando-se da toxicologia analítica para alcançar seus objetivos.
Na divisão moderna da toxicologia, identificamos quatro áreas principais: clínica, regulatória, de pesquisa e forense. O foco deste estudo está na toxicologia forense, que aplica os princípios da toxicologia para fins legais, incluindo a identificação de substâncias que podem estar associadas a mortes, riscos à saúde, danos à propriedade ou ao meio ambiente.
Historicamente, a toxicologia forense se estabeleceu como uma ciência no século XIX. Em 1814, Mathieu Orfila, considerado o pai da toxicologia moderna, publicou o "Tratado sobre Venenos", marcando a primeira abordagem sistemática do estudo de substâncias químicas e seus efeitos nocivos. Em 1850, Jean Servias Stas fez história ao ser o primeiro a identificar a nicotina nos tecidos de uma vítima de envenenamento, destacando a importância da química analítica na toxicologia forense. A disciplina desempenha um papel crucial em questões jurídicas relacionadas a envenenamentos e outras causas de morte.
A cadeia de custódia é vital na toxicologia forense, garantindo que todas as etapas do processo, desde a coleta, identificação, armazenamento, transporte e análise das amostras até a elaboração dos laudos ou relatórios, sejam meticulosamente documentadas. Isso assegura a integridade e a confiabilidade dos resultados, permitindo um rastreamento preciso de todas as operações realizadas em cada amostra.
A toxicologia forense se divide em três principais áreas de aplicação: toxicologia post mortem, toxicologia ante mortem, toxicologia do desempenho humano e toxicologia ambiental.
A toxicologia post mortem é focada na determinação da causa da morte e é onde a toxicologia forense teve suas origens. Os toxicologistas examinam amostras biológicas obtidas durante a autópsia de indivíduos falecidos. Dependendo do tipo de amostra e dos achados durante a análise, a interpretação dos resultados pode ser complexa, especialmente devido a fenômenos como a redistribuição de substâncias no corpo após a morte, que podem complicar a emissão de um laudo definitivo.
A toxicologia ante mortem lida com situações em que os envolvidos podem ter sido influenciados por substâncias químicas no momento de cometer um delito, mas que não resultaram em morte. Isso é comum em crimes como tentativas de homicídio, estupro, roubo e sequestro, onde drogas que facilitam a execução desses atos, como hipnóticos e sedativos, podem ter sido usadas para incapacitar a vítima. Nesses casos, o intervalo entre o crime e a coleta de amostras, como sangue ou urina, é crucial para identificar o agente tóxico e relacioná-lo ao crime.
Exame toxicológico
O exame toxicológico pode ser requerido em várias circunstâncias, como na renovação da carteira de motorista para as categorias C, D e E conforme a Lei 13.103/2015, na seleção para cargos públicos, no controle antidoping de atletas, e em procedimentos forenses para investigar suspeitas de envenenamento ou overdose.
Existem quatro métodos principais de exames toxicológicos utilizados atualmente: exames de sangue, urina, suor e tecidos, este último frequentemente realizado por meio de amostras de cabelo.
Exame toxicológico de sangue: Este método é ideal para identificar substâncias ingeridas recentemente, dado que possui uma janela de detecção curta, geralmente até 48 horas. A coleta é feita em duas amostras para melhorar a precisão do teste. Após a coleta, as amostras são analisadas por toxicologistas e patologistas que emitem um laudo baseado em um valor limite específico, o "valor de corte".
Exame toxicológico de urina: Este teste é mais abrangente e pode identificar toxinas por um período de até nove dias. É comum em testes antidoping, onde atletas têm suas amostras coletadas e analisadas. Duas amostras de urina são coletadas: uma para análise imediata e outra reservada para possíveis contraprovas. A urina passa por testes preliminares de densidade e pH antes de ser dividida para uma série de testes específicos, visto que nenhum teste único pode detectar todas as drogas simultaneamente.
Exame toxicológico de tecidos (cabelo): Este tipo de exame é amplamente utilizado devido à sua capacidade de detectar substâncias por um período extenso, até seis meses. Além do cabelo, tecidos como fígado, pele e outros órgãos podem ser utilizados, mas o cabelo é preferido devido à sua intensa atividade biológica e conexão com diversos sistemas corporais. As técnicas de cromatografia líquida e espectrometria de massa são usadas para analisar compostos orgânicos e inorgânicos no cabelo. Os fios são coletados no laboratório, selecionados com comprimento mínimo de quatro centímetros, e após limpeza, são desintegrados química e mecanicamente até se transformarem em uma pasta. Essa pasta é então processada sob diferentes níveis de pressão para isolar e identificar as substâncias, resultando em íons produto que funcionam como impressões digitais moleculares das substâncias presentes na amostra.
A análise laboratorial dessas amostras é crucial para detectar e quantificar substâncias de interesse, estabelecendo uma relação causa-efeito confiável. Há uma ampla gama de substâncias tóxicas, ou analitos, que podem ser examinadas, e uma variedade de amostras e métodos podem ser empregados. As principais amostras incluem sangue total, soro, sangue cardíaco, urina, fezes, vômito, cabelos, pelos, fígado, conteúdo gástrico, tecidos, cérebro, alimentos, água e até solo.
A coleta de amostras deve seguir protocolos estritos para garantir a integridade e a admissibilidade dos resultados em investigações clínicas ou legais:
- Uso de kits de coleta apropriados: esses kits contêm todos os materiais necessários para a coleta, armazenamento e transporte seguros das amostras.
- Técnica asséptica: é crucial para evitar contaminação que poderia comprometer os resultados dos testes.
- Identificação e rotulagem adequadas: cada amostra deve ser claramente identificada com detalhes do indivíduo e data/hora da coleta.
- Cadeia de custódia: manter um registro detalhado de todos que manusearam a amostra desde a coleta até a análise para garantir a não contaminação ou adulteração.
As amostras precisam ser transportadas e armazenadas em condições que preservem sua integridade, como refrigeração ou congelamento, dependendo das diretrizes específicas para o tipo de amostra. É ideal minimizar o tempo entre a coleta e a análise para evitar a degradação das substâncias.
Interpretação dos resultados toxicológicos
Interpretar resultados toxicológicos em uma necropsia envolve um processo detalhado para correlacionar os dados laboratoriais com o contexto clínico e patológico do falecido. Aqui estão algumas considerações e métodos chave para a interpretação eficaz desses resultados:
Entendimento das Concentrações Substanciais
A interpretação começa com a análise das concentrações das substâncias detectadas nos tecidos e fluidos corporais. Essas concentrações precisam ser comparadas com níveis conhecidos como terapêuticos, tóxicos e letais, que são referências estabelecidas para entender se a quantidade encontrada poderia ser responsável pela morte ou por sintomas específicos.
- Consideração da Janela de Detecção
Diferentes substâncias têm diferentes janelas de detecção que podem influenciar sua presença em amostras post-mortem. Interpretar esses resultados implica entender essas janelas para determinar se a substância foi consumida antes da morte e qual poderia ser seu possível efeito.
- Análise da Redistribuição Post-Mortem
Após a morte, substâncias podem se redistribuir entre os compartimentos do corpo, o que pode levar a alterações nas concentrações originais. Os toxicologistas precisam considerar esse fenômeno ao interpretar os níveis de substâncias, especialmente em locais de coleta não convencionais como o humor vítreo ou o tecido hepático.
- Correlação com os Achados da Autópsia
Os resultados toxicológicos não devem ser interpretados isoladamente. Eles precisam ser correlacionados com os achados físicos da autópsia, incluindo quaisquer evidências de trauma, doença natural ou condições que possam ter contribuído para a morte. Por exemplo, a presença de drogas cardiotóxicas pode ser particularmente relevante em um indivíduo com achados de doença cardíaca na autópsia.
- Contexto Clínico e Circunstancial
A interpretação deve considerar o contexto clínico do falecido, incluindo quaisquer condições médicas conhecidas e tratamentos que estavam sendo seguidos. Além disso, circunstâncias da morte, como um possível cenário de overdose, uso recreativo de drogas, ou envenenamento intencional, são essenciais para a interpretação correta dos dados toxicológicos.
- Considerações Farmacológicas
Entender as propriedades farmacológicas das substâncias detectadas, como sua farmacocinética (absorção, distribuição, metabolismo e excreção) e farmacodinâmica (efeitos e mecanismos de ação), ajuda a interpretar como essas substâncias poderiam ter afetado o falecido.
- Resultados e Laudos
Os toxicologistas devem compilar suas descobertas em um laudo que explique claramente a relevância dos níveis de substâncias encontrados em relação à causa da morte. Este laudo é crucial para as partes interessadas, incluindo autoridades legais e familiares.
Interpretar resultados toxicológicos requer um equilíbrio cuidadoso entre conhecimento científico, análise detalhada de evidências e compreensão clínica, garantindo que todas as conclusões sejam fundamentadas em evidências robustas e análise meticulosa.
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