TEORIA DA EDUCAÇÃO FÍSICA ADAPTADA
Educação Física Adaptada no Brasil e teorias curriculares
Os estudos sobre currículo há algum tempo deixaram de ser uma área exclusivamente técnica ou voltada para métodos e procedimentos, cuja configuração se apoiava em aspectos tecnicistas. Atualmente, pode-se falar em uma tradição crítica do currículo no âmbito sociológico, político e epistemológico, ou seja, as formas de conceber um currículo se iniciaram pela perspectiva de uma teoria tradicional e tecnicista, em uma dimensão utilitarista, e posteriormente foram questionadas pelas teorias críticas e pós-críticas.
Levando-se em consideração a etimologia do termo “currículo”, cuja origem é do latim “curriculum”, que significa “pista de corrida”, “um percurso”, no qual expressa uma identidade e uma subjetividade, entende-se que o currículo não esteja somente vinculado ao conhecimento, pois também perpassa a questão das relações de poder ao privilegiar este ou aquele conhecimento. A abordagem sobre currículo não se refere a algo neutro, ou seja, o currículo traz subjacente uma influência social e se constitui em um artefato cultural implicado em relações de poder, produzindo olhares vinculados a interesses sociais e particulares, uma história que retrata a forma organizacional da sociedade e da educação.
A questão das relações de poder é uma noção central da teorização crítica, pois o currículo, ao determinar qual o tipo de conhecimento que é válido, pressupõe a expressão de interesses de grupos, os quais se encontram em vantagem nessas relações. Os estudos e as pesquisas sobre currículo tiveram seu início nos Estados Unidos nos anos 1920, em um contexto de urbanização, industrialização e de massificação da escolarização, tendo seu marco na obra de Bobbit, The Curriculum, de 1918. Esta entende o currículo como simplesmente uma mecânica, cuja concepção se consolida a partir da obra de Ralph Tyler em 1949, sendo o currículo centrado na organização e funções definidas.
Vinculada a esse processo de racionalização do currículo em sua teorização tradicional, e devido ao grande impulso industrial, a concepção de currículo era como se o funcionamento de uma escola fosse como uma empresa comercial ou industrial, alcançando seus objetivos de forma eficiente. Ou seja, os fins educacionais, nessa perspectiva, devem preparar tecnicamente as pessoas para as exigências profissionais da vida adulta. Quando o questionamento à elaboração curricular busca entender que há necessidade de estudos para que se efetuem propostas curriculares é que se iniciam movimentos de muitos estudiosos, na Europa e nos Estados Unidos, no campo do currículo para discutir uma nova teorização curricular, a teoria crítica do currículo.
Na década de 1960, com a eclosão de movimentos como os protestos contrários à guerra no Vietnã, a contracultura, o feminismo e a liberação sexual nos Estados Unidos, a independência das antigas colônias europeias, os protestos estudantis na França, as lutas contra a ditadura militar no Brasil, surgem novas tendências sobre a teorização do currículo no chamado movimento de reconceptualização. Assim, tem início uma nova forma de olhar o currículo: de um lado, as teorias tradicionais, e de outro, o surgimento de uma nova configuração teórica sobre o currículo – a teorização crítica ou as teorias críticas do currículo.
Até então, as teorias tradicionais traziam em seu bojo uma concepção que se restringia à atividade técnica de como fazer o currículo, ao passo que as teorias críticas faziam um contraponto ao desconfiarem e questionarem os arranjos educacionais e sociais e o status quo, responsabilizando-o pelas desigualdades sociais. Ou seja, a teorização crítica concebe que o importante não é saber como fazer o currículo, mas compreender o que o currículo faz. Nesse contexto, entende-se que o currículo, em sua discussão, está envolto em uma questão central, que são as relações de poder, pois, ao definir aquilo que é conhecimento válido, expõe os interesses de grupos e classes privilegiados que representam identidades individuais e sociais.
As relações de poder, portanto, irão demarcar a separação entre as teorias tradicionais e as teorias críticas e pós-críticas do currículo, pois argumentam que não existe desinteresse científico, visto que toda teoria implica relações de poder. Ou seja, a questão central não será mais “o que fazer” ou “como fazer”, mas “por que fazer”, qual o interesse em privilegiar este ou aquele tipo de conhecimento, de identidade e de subjetividade.
A partir desses pressupostos tem-se o entendimento de que o currículo é uma expressão do conhecimento considerado válido, selecionado por um grupo social com vantagem e maior força nas relações de poder. Nesse sentido, assume-se, mesmo que implicitamente, que há uma ideologia de um grupo dominante que se sobressai na constituição do currículo. As contribuições de Bourdieu e Passeron trazem as concepções sobre a reprodução cultural como eixo norteador e articulador apontando a cultura dominante sendo reproduzida dentro de instituições como a escola por meio de valores, costumes, hábitos etc.
No entanto, tendo como pano de fundo essa relação de poder entre dominantes e dominados, têm início novas formas de entender o currículo por meio das chamadas teorias pós-críticas do currículo ao enfatizar a incorporação de diversas culturas e grupos ao movimento do multiculturalismo, que reivindica legitimação e reconhecimento de formas de cultura dos grupos dominados. Essas teorias compreendem o currículo para além das questões que envolvem a divisão de classes sociais, ou seja, apontam no sentido de entendimento das questões de poder nas relações de gênero, raça, etnia e sexualidade na incorporação cultural de grupos sujeitos à exclusão social de seus valores culturais.
No entanto, um currículo com inspirações multiculturais não se limita a ensinar a tolerância e o respeito, por melhor que isso pareça, mas também analisa, em uma perspectiva crítica, quais são as razões da desigualdade. Ou seja, um currículo multicultural deve se permeado pela democracia e pelo respeito à pluralidade. Dessa forma, é imprescindível que os idealizadores das propostas curriculares se aproximem dos campos de atuação dos profissionais, verificando a relação do currículo prescrito e do currículo em ação, e vice-versa, a partir de ações coletivas na forma, por exemplo, de reflexões, discussões e intervenções, de acordo com a realidade de aplicação curricular.
Assim, compreendendo o currículo como algo dinâmico e que possibilita a inclusão de determinados conhecimentos, bem como se inscreve como um facilitador para que se tenham possibilidades de acesso a esses conhecimentos, questiona-se:
Como se deu o ingresso da Educação Física Adaptada (EFA) nos currículos dos cursos de Educação Física? Quais os conhecimentos priorizados na EFA?
Quais relações podemos estabelecer entre as teorizações do currículo e o surgimento da EFA?
Quando falamos sobre Educação Física para Pessoas com Deficiências, estamos nos referindo a uma área do conhecimento com uma trajetória recente dentro do contexto educacional. A atividade física adaptada é composta de uma variedade de áreas de conhecimento com teorias, modelos, ferramentas de ensino e de reabilitação específicos, além de prestar serviços limitados a competências profissionais especializadas.
A EFA é uma subdisciplina da Educação Física e tem como proposta possibilitar a participação de alunos com necessidades especiais, dentre eles os com deficiência, de maneira satisfatória e com sucesso, suprindo suas necessidades em longo prazo (no período entre 0 e 21 anos de idade), enquanto a AFA deve se estender por toda a vida. No Brasil, o primeiro documento que faz referência à Educação Física para Pessoas com Deficiências é o Parecer no 1002/74, do Conselho Federal de Educação (CFE), cujo tratamento especial era previsto no art.9 da Lei no 5.692/71, em cujo período era escassa a qualificação em Educação Física para atuar com essa população, observando que as instituições de ensino superior (IES) eram responsáveis por tal qualificação, sugerindo que nos cursos deveria haver um complemento curricular.
Na década de 1980, a Universidade de São Paulo (USP), a Universidade Federal de Uberlândia (UFU), em Minas Gerais, a Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e as Faculdades Isoladas Castelo Branco deram início a programas de formação profissional e de pesquisa nos currículos quanto à EFA. No entanto, as primeiras discussões acerca da possibilidade de uma disciplina específica que tratasse sobre Educação Física para pessoas com necessidades especiais nos currículos ocorreram em encontros entre os profissionais da área, quando propuseram a garantia de habilitação profissional para atuar junto a essa população.
Assim, a partir dos resultados de consultas a docentes e IES é publicado, no ano de 1987 o Parecer no 215/87, tendo em sua composição a sugestão, entre outras, da disciplina: Educação Física e Esporte Especial para Pessoas com Deficiências: Intelectual, Física, Auditiva, Visual e Múltipla. Sendo assim, o ingresso, ainda que gradual, da EFA como disciplina nos cursos de Educação Física significou um avanço curricular, pois se entende que é na graduação que deve ocorrer uma boa fundamentação teórica e prática na mudança do perfil profissional. Ou seja, espera-se que o futuro profissional conscientize-se de que sua atuação deverá ocorrer sem discriminações de qualquer natureza.
Além disso, é também resultado de uma mudança de paradigma na área, o qual apresentava um ideário preocupado com a formação de corpos fortes e saudáveis, concepção que deixou de ser a única, o que possibilitou o surgimento de novas abordagens de atuação profissional e pesquisa. Nesse contexto, a sugestão da EFA como disciplina curricular fez parte de um processo que questionava o currículo tradicional esportivo, predominante na Educação Física, e que, na década de 1990, propôs uma nova base curricular para a área, para um novo modelo, o de orientação técnico-científica baseada em uma concepção acadêmica.
Com base nessa proposta, a EFA traz em seu bojo uma característica que se baseia no modelo médico, por meio de conteúdos que abordam a caracterização das deficiências, bem como adentra as questões de necessidades especiais, como as atividades físicas voltadas para hipertensos e cardíacos, por exemplo. No entanto, entendemos que a Educação Física, diferentemente da EFA, encaminha suas concepções para a questão da ginástica e do exercício físico como forma de promoção de saúde para camadas da sociedade “não deficientes”.
Foi no fim do século XVIII e início do século XIX, na Europa, com a construção e consolidação da sociedade capitalista, que uma ideologia foi se tornando cada vez mais influente, tendo como pano de fundo os exercícios físicos, pois se fazia necessário para essa sociedade que houvesse um novo perfil de homem, “mais forte, mais ágil, mais empreendedor”. Os exercícios físicos, então, passaram a ser entendidos como “receita” e como “remédio”.
Julgava-se que, através deles, e sem mudar as condições materiais de vida a que estava sujeito o trabalhador da época, seria possível adquirir o corpo saudável, ágil e disciplinado exigido pela nova sociedade capitalista. Sendo assim, no caso do exercício físico para pessoas com deficiências, temos outra concepção vinculada à ginástica como tratamento terapêutico, que ao longo dos anos se denominou de “ginástica médica” e se fortaleceu tanto pelo seu cultivo desde a Antiguidade, pelos médicos gregos, como por outros médicos, como Fuller, Andry e Tissot, no século XVIII, a ponto de ser considerada parte da Medicina na conservação da saúde. Isso resultou na constituição do modelo médico, tendo como base a classificação e o diagnóstico das deficiências.
O modelo médico, em sua constituição, apresenta um conjunto de concepções e fundamentações com bases científicas e é frequentemente denominado de abordagem categórica, classificando os seres humanos, sendo os tratamentos baseados na segregação e justificados pelas epidemias, sendo essa concepção generalizada e não tendo produzido efeitos positivos nas ações pedagógicas e na educação especial. Retornando à questão curricular, podemos então entender, a partir de sua trajetória, que a EFA foi se legitimando até se tornar uma disciplina de curso superior no Brasil.
Nesse sentido, busquemos entender qual concepção e teorização curricular aproximam-se daquela em seu processo de inserção no currículo. É notório observar que as origens da disciplina tiveram um viés biológico, o que nos leva a considerar uma proximidade da EFA dentro de uma concepção tradicional de currículo enquanto uma área do conhecimento que propõe procedimentos especializados a uma determinada população, ou seja, uma concepção técnica sobre como fazer, a partir de condições especiais ou adaptadas.
No âmbito pedagógico, a presença da EFA em cursos de licenciatura para tratar de uma população específica (diferentemente de outras licenciaturas que não englobam a “geografia ou matemática adaptada”) apresenta pelo menos dois aspectos:
1. O fortalecimento de uma visão biologicista para trabalho pedagógico em Educação Física só reforçará o preconceito para com os alunos e alunas com necessidades especiais, pois são tratados pelo viés médico e classificatório das deficiências.
2. Sendo a escola um espaço democrático, não há possibilidades de se separar os “diferentes”, tendo como base o reconhecimento de direitos equânimes.
Enquanto disciplina isolada num currículo do tipo “Frankenstein”, no caso específico dos cursos de licenciatura em Educação Física – e, assim, consideramos que tal realidade é estendida para os cursos de graduação/bacharelado em Educação Física –, dificilmente terá condições de oferecer uma boa preparação profissional aos futuros professores e profissionais para quando estiverem em atuação profissional. Assim, consideramos que essa é uma questão que pode ser discutida na perspectiva do conceito de profissão, status alcançado há pouco mais de uma década pela Educação Física no Brasil, sendo a EFA uma de suas especialidades.
Este artigo pertence ao Curso de Educação Física Adaptada
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